cada homem com sua verdade, e deus com ela (12 anos)

Comecei lendo o prólogo.

"Morgana fala..."

Talvez ainda hoje, 2023, esse seja o prólogo que mais me impressionou na vida, mas não tenho certeza sobre isso. Aos 12 anos, com certeza foi o mais impressionante da minha vida de leitora. Enxerguei Morgana imensa, sábia, poderosa e misteriosa. Não entendi bem de cara, mas reli muitas e muitas vezes. Considerei um crime eu ter pulado o prólogo na tentativa de leitura anterior. Ah, crianças.

(Aqui preciso fazer um parênteses, claramente usando o julgamento de agora para interpretar as minhas memórias de tantos anos atrás. Neste momento, aos 12 anos, eu não considerava que já tinha lido o livro. Considerava que tinha tentado ler, mas era nova demais para conseguir. Foi só depois da atividade do curso de Letras que eu passei a considerar que foi uma leitura, porque aprendi que o sentido é dado pelo leitor, e não pelo texto, e ele é totalmente baseado no que o leitor tem de conhecimentos prévios à leitura do texto. Ou seja, com 6 anos foi uma leitura sim, com o que eu tinha de conhecimento prévio - e de desenvolvimento neurológico, conceito que vim a adquirir nos últimos 2 ou 3 anos. Então foi sim uma experiência de leitura. Mas, com 12 anos, eu não pensava assim.)

Vi muitas partes chatas no livro. Não consegui acompanhar nada da parte de como Uther se tornou tão importante. Aceitei que ele era importante, que tinha alguma coisa sobre batalhas e sobre coisas chatas, reuniões, diálogos cansativos e confusos. A parte importante para mim era que Igraine (já comecei sabendo que era o nome de uma mulher) estava traindo o marido dela. Audaz, né, um livro que mostra o romance de uma mulher com seu amante. E ela tinha uma filhinha pequena.

Eu não gostei da Igraine. Gorlois era bom para ela. Em uma época em que ele tinha o direito de descartar filhas meninas, ele deixou ela ficar com Morgana. E aí Igraine traiu ele? Eu não gostei. Achei injusto, errado.

E aí Gorlois morre de uma forma muito horrível, tadinho. E ao invés de a Igraine guardar o luto pelo bondoso marido, ela casou com o amante. Para piorar, ela era uma mãe negligente na presença do Uther. Eu tive muita mágoa da Igraine. Muita mesmo.

Tem um outro "Morgana fala...", em que Morgana narra que ela tinha algo em torno de 11 anos, Artur tinha algo em torno de 1 ou 2, não me lembro. Uther chega, Igraine corre para receber o marido, Artur cai e machuca o queixo, e Morgana não apenas cuida da criança quanto toma um xingo de Igraine, porque Morgana deveria cuidar do irmão.

Eu pensei em mim e nos meus primos. Morgana tinha uma idade próxima na minha, eu me imaginei sendo obrigada a cuidar como se fosse meu filho de um dos meus primos menores, como Morgana cuidou de Artur. Aquilo não era justo. Igraine trocou os filhos por um homem, e eu considerei isso absolutamente imperdoável.

Só lá para o fim da vida da Igraine, alguns volumes do livro a frente, eu comecei a perdoar ela. Mas sempre com um ranço e uma mágoa residuais.

Não entendi muito bem o papel da Morgause no parto da Morgana. Fiquei meio triste e chateada, mas ela estava fazendo o melhor pela Morgana e pelo bebê, certo?

Artur era um príncipe e um rei e um herói, eu não tive grandes impressões sobre ele. Meio tolo, mas é isso.

Viviane era um mistério para mim. Meio má, meio cruel, mas muito inteligente, e bondosa às vezes. Eu me sentia intimidada por ela.

Kevin, Niniane, Nimue foram mais importantes em uma parte que não entendi muito bem e achei um pouco chata.

Lancelote me confundiu. Ele me parecia triste demais sem motivo nenhum. Lindo, maravilhoso, e como Morgana desejou muito ele, eu acreditava que ele era muito lindo e atraente. Mas, honestamente, eu achava ele meio resmungão e um pouco chato.

Eu odiei Gwenhwyfar, ao mesmo tempo que entendi muito ela. Eu me identifiquei demais com o medo dela do céu aberto, como eu sempre tive medo de paredes cegas. As descrições dela sobre o céu traduziram meu incômodo com muros grandes e cegos. Eu entendia ela, os objetivos dela, as decisões dela. Mas odiei ela porque ela era a personificação dos inimigos de Avalon. Eu não podia torcer para ela, porque ela era vilã, certo? Mas ela não era má. Confuso e contraditório. Eu obviamente escolheria Morgana ao invés de escolher ela a qualquer momento. Mas algumas partes minhas concordavam com ela, e isso me deixava confusa. Eu quis que ela "virasse" para o lado da Morgana e de Avalon, assim eu poderia gostar dela em paz.

Morgana me afetou em pontos demais, muitos deles eu senti lá nos meus 12 anos, mas eu não tinha vocabulário para explicar.

Ela era a heroína, o livro era sobre ela, então como que ela podia fazer tantas coisas burras? Viviane ensinou ela certinho, ela fez pirraça. Era só obeceder que teria dado certo, sabe? Mas ao mesmo tempo, com o passar dos anos, ela começou a ver os problemas dos atos anteriores e veio tentar resolver. Então por que ela não fez certo de cara? Não era como se ela não soubesse o que fazer. E eu acreditei que ela salvaria Avalon, mas as coisas já não estava realmente nas mãos dela, e me frustrei com isso. Como que a heroína podia fazer tanta bobagem e colocar tudo a perder?

Achei imoral ela se envolver com Acolon, mas se fosse pra salvar Avalon, tudo bem. Mas nem conseguiu salvar. Ou seja: mais um vacilo dela.

E, ao fim, ela estava tão plena e tão conformada com a morte do Artur, com Avalon se perdendo nas brumas. Ela fez as pazes com o convento, foi viver lá. A tranquilidade com que ela termina o livro, tendo sido derrotada em tudo que ela fez a vida inteira, me deixou muito inconformada. Era pra ter sido tudo diferente. Se ao menos ela não tivesse sido tão rebelde e teimosa. E eu também esperava que o fim dela fosse sofrido, já que ela "perdeu".

Terminei o livro inquieta. Perguntei pra minha mãe se ainda existia a religião da Deusa. Eu queria que Avalon tivesse vencido, de alguma forma. Minha mãe respondeu algo nas linhas de "existem cultos ridículos na Europa, mas não têm nada a ver com o que está descrito no livro". Fiquei chateada, mas okay.

De uma forma geral, lembro que comentei várias coisas com a minha mãe sobre o livro, enquanto eu lia. Lembro de ela ficar admirada com minha compreensão sobre o livro, e falar nisso com alguém, talvez com minha tia.

Lembro também de minha outra tia, C, ao saber que eu estava lendo As Brumas (ou que eu já tinha lido), comentar comigo sobre o trecho "Mas o que pode uma virgem saber das mágoas e labutas da humanidade?". Tia C repetiu esse trecho e complementou "Tadinha, né, como uma virgem vai saber?? Ela não sabe de nada!"

Algumas coisas foram notadas a partir daí: eu não sabia que a tia C também tinha lido; e eu discordei demais, porém em silêncio, dessa afirmação dela. Eu estava muito convicta de que fazer ou não sexo não tinha nada a ver com percepções de mundo. Eu era um exemplo: virgem e muito sabida sobre muitas coisas.

Fiquei confusa e meio sem graça com a cena de Arthur, Gwen e Lancelote, e depois soube pela minha mãe que minha avó parou de ler naquela cena porque achou imoral.

Eu vi Morgause como minha tia L, a tia que gostava muito desse livro. Poderosa, dona de si, tão dona do próprio castelo quanto o marido dela. Eu olhava para meus tios e tias, e via que existia uma hierarquia ali nos casamentos deles. Eu não tinha vocabulário para isso na época, essa é mais uma interpretação dos 36 anos sobre os 12 anos. Mas era isso que eu via: uma dinâmica de poder dos maridos e de subserviência das esposas. Mas não era assim com a tia L.

Ela era dona de casa, sim, e Morgause também era. Morgause era rainha e tinha que gerenciar as coisas do castelo, como orientar cozinheiras, gerenciar as moças do castelo, pensar na carne e nos grãos e etc. Mas (mais uma palavra que adquiri com os anos, aos 12 anos eu não tinha esse vocabulário) Morgause tinha poder político, e discutia como igual com o marido dela. Eu via isso na minha tia L. A casa dela era o castelo dela. Nenhuma das duas se rebaixava, jamais. E ainda tinha o fato de as duas terem cabelos vermelhos. Pra mim elas eram quase sinônimas.

Dentro da minha cabeça, eu chamava um menino da minha sala, de quem eu gostava, de Uther, porque ele era loiro e ossudo e grande, e se parecia muito com o que eu imaginava para Uther. Não lembro mais o nome do menino.

Em resumo, o fato é que esse livro ocupou um lugar imenso na minha cabeça. Nos anos seguintes, reli trechos, falei sobre o livro, postei sobre ele em um blog. Quando ganhei um computador aos 13 anos, digitei o prólogo e relia de tempos em tempos. Foi uma leitura muito satisfatória e agradável.

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