um livro bobinho e fútil? (18 anos)

Eu era adolescente quando percebi minha mãe e minha tia L. voltarem a comentar sobre As Brumas. O foco então era a comparação entre filme e livro. Eu não lembro dos comentários em si delas, mas ao ver que elas comentavam, resolvi reler. Afinal, quando eu li eu era criança, e agora eu era adulta, e entendia tudo muito melhor.

Lembro de levar o livro para a escola, e ler lá durante intervalos, aulas escapolidas de Educação Física, e de ler dentro do ônibus.

[Lembro também que quando terminei de ler, em seguida li O Mundo de Sofia, e um dia um menino da minha sala por quem eu tinha um super crush se aproximou de mim enquanto eu estava sozinha no Bosque (apelido de uma espécie de pracinha dentro da escola) e veio comentar sobre o Mundo de Sofia. Que a irmã dele conheceu o autor, se não me engano. E que ele não imaginava que eu lia livros como O Mundo de Sofia, já que tinha me visto com As Brumas um tempo antes e por isso pensou que eu era bobinha e fútil.

Eu passei alguns anos me perguntando se As Brumas realmente era bobinho e fútil, sendo que era tão complexo e significativo para mim naquele momento. Hoje eu entendo que não seja uma literatura considerada Literatura, com L maiúsculo, mas também entendo que o motivo principal para o descarte é porque é um romance contado por uma mulher do ponto de vista quase sempre de personagens mulheres, e misoginia impede que visão feminina seja considerada importante. Enfim, aqui eu sei que estou jogando julgamentos para além dos 18 anos, por isso o colchete. O foco é: passei um período pós leitura dos 18 questionando se o crush, tão inteligente e lindo, não poderia estar com a razão.]

A primeira grande diferença foi que descobri que existe política no livro. Toda aquela parte sem graça e confusa sobre Uther, páginas e páginas de discussões sobre quem deveria ser o próximo líder depois de Ambrósio Aureliano era política. As conversas sobre reino entre Morgause e Lot, muito do que era dito por Taliesin, e motivações por trás de decisões de Viviane e de Arthur, tudo era política. Permaneci achando essas partes bem chatas, umas mais do que as outras, e ainda bastante confusas, mas fiquei bem impressionada com toda uma dimensão nova que eu simplesmente não enxerguei na leitura anterior.

Então existia um motivo maior para o casamento de Igraine com o Gorlois. E para ela ter sido incentivada pela irmã Viviane e pelo Merlim a trair o maridão com o Uther. Mas não era sobre amor a traição?

Quando Igraine transa com Uther pela primeira vez, eu senti uma vergonha imensa por minha mãe saber que eu já tinha lido uma cena de sexo na minha vida. Mas aparentemente ficou tudo bem, né? Eu só senti muita muita muita vergonha por isso ao perceber que tinha ali uma cena de sexo, e que estava subentendido que se eu li o livro, eu li a cena anos atrás. E que minha mãe sabia.

E a cena me pareceu um pouco estranha. Igraine não parece muito entusiasmada, então Uther questiona o receio dela, e questiona o fato de Gorlois nunca ter "tocado" Igraine com gentileza. E aí Uther aparentemente "toca" (a que exatamente estamos nos referindo aqui?!?!) Igraine com gentileza, e por isso ela se torna uma mãe negligente. (???????)

Primeiro ponto: mas Gorlois não era um homem bom? Um bom marido? Como assim algo que ele fizesse poderia ser desagradável?

Segundo ponto: beleza, Igraine estava apaixonada, estava sentindo prazer, mas isso ainda não justificava ela deixar o filho bebê sob os cuidados da filha criança dela. Os filhos deveriam ser a coisa mais importante da vida dela. Afinal, ela era mãe!

Então em resumo: explicou, mas não justificou. Entendi que Igraine não abandonou os filhos do nada, mas julguei sim os motivos dela para fazer isso. No fim das contas, ela era casada, e Gorlois era um marido majoritariamente bom.

Viviane surge então como uma tia muito legal. E, ao contrário de Igraine, ela respeita Morgana, é carinhosa com ela. E leva ela embora para Avalon.

Eu senti um certo alívio com a intervenção da Viviane, afinal, com Igraine, Morgana não era vista e ouvida. Mas em seguida eu entendi por que eu tinha tido a impressão de Viviane ser meio má: ela é extremamente rígida com Morgana.

Morgana passa por todo um treinamento e preparação de anos, e Viviane sempre está por perto de alguma forma, mas ainda falta alguma coisa, e essa falta é importante nessa leitura, foi uma impressão forte que eu tive. Eu não tinha nessa época o vocabulário para expressar o que faltava, mas hoje eu digo que minha impressão na época foi que Morgana, enquanto crescia, nunca foi acolhida e cuidada por ninguém, nem por Igraine, nem por Viviane.

Uma coisa que me surpreendeu muito n'As Brumas quando Morgana se encontra com Lancelote foi o lance de ela ser virgem aos 18 anos, se não me engano. Isso me incomodou porque sendo uma história que se passa antes do período medieval, a virgindade da Morgana ser mantida até ali me pareceu uma descaracterização em relação à História. Mas foi um incômodo pequeno.

Eu definitivamente não tinha guardado na minha cabeça que Morgana e Lancelote quase transam, que foi naquele momento ali que surgiu a paixão dela por ele. E eu também não lembrava que momentos depois seria a primeira aparição de Gwenhwyfar no livro.

Eu odiei a Gwenhwyfar. Ela sussurrando com Lancelote, excluindo Morgana, tão frágil e quebrável e delicada, e tratando Morgana como inferior. E ele, um idiota, todo babão pela mocinha tão frágil. Eu me senti pessoalmente traída pelo Lancelote. "Pequena e feia como a gente das fadas", disse Gwenhwyfar sobre Morgana. E nessa altura dessa leitura, eu não entendi como fui gostar do Lancelote na leitura anterior. Como ele pode ser idiota desse jeito? Como não vi isso antes?

Então Arthur se casou, Morgana teve o bebê, Arthur descobriu que era pai, o bebê foi levado. Morgana ficou confusa por ter transado com o irmão, culpada, então foge. E mais uma coisa apareceu nessa leitura que eu não tinha percebido antes: a relação de Morgana com Morgause. Para a Morgana criança, ela parecia incrível. Era carinhosa, chamava atenção para ela, para os dotes dela, ouvia Morgana e a admirava, tudo que faltava na relação com Igraine. Quando Morgause voltou a aparecer para Morgana, eu lembrei do que ela fez na primeira vez que li, e me senti na obrigação de negar e me questionar o tempo todo, pois uma nova visão que eu tinha na época que reli foi que Morgause tinha sido uma inspiração de mulher forte para mim quando eu era criança, como minha tia L. era. E na época, duvidar da bondade da Morgause era como duvidar da bondade da tia L, o que me ofendeu muito.

Morgause ainda era quase um sinônimo da minha tia L quando comecei a leitura. Então achei incômodo Morgause fazer coisas que poderiam ferir a imagem de perfeição que eu tinha dela. Ao começo do livro, quando ela arrasta asa para Gorlois, eu achei feio, mas acho que meio que arquivei o problema em um canto da minha cabeça. Quando Morgana está parindo seu bebê, eu fiquei realmente incrédula com a atitude de Morgause. Ela estava bem intencionada de verdade, não é mesmo?? Ela não faria algo contra Morgana em plena consciência. Estranho, incômodo. Mas ela ainda era maravilhosa pra mim. Neguei os defeitos na versão final do meu julgamento sobre Morgause.

Eu percebi que Kevin é importante demais para a história. Ele é um traidor de Avalon? Sim. Filho da puta, ele. E feio. Me incomodou Morgana ficar com ele por um tempo, por ele ser feio e torto, mas eu podia concordar que ele era muito interessante. Mereceu o fim que teve, apesar de que achei exagerado Nimue se matar depois de fazer o feitiço. Julguei Nimue como fraca, pois ela não deveria ter se envolvido tanto, ainda mais com um homem feio e torto e deficiente daqueles.

Artur pra mim continuou sendo um bobão genérico. Lancelote continuou confuso para mim. Gwenhwyfar continuou me provocando admiração e antipatia.

Eu percebi de fato a busca pelo Santo Graal, percebi a batalha contra o monstro do lago Ness, e essas partes me entediaram bem. E elas aumentaram minha confusão com Lancelote (porque bordados mágicos e bainha de espada enfeitiçada tudo bem pra mim, mas monstro do lago já era fantasioso demais): pra mim ele era meio "esfarelado", ao invés de ser sólido e coerente. Todos os personagens tem motivos, tem condutas sólidas com eles mesmos. Lancelote me parecia muito solto, difícil de definir, incoerente talvez. Amor a Gwen ou lealdade a Artur? Ver sentido em Avalon, ou seguir o cristianismo? Família ou o Graal? No fim das contas, continuei achando ele chato.

Minha lembrança dessa leitura tem poucos outros destaques. Mantive muitas das minhas opiniões além dessas que já descrevi. Novamente dei moral pra tentativa da Morgana de salvar Avalon se unindo a Acolon. Novamente fiquei sentida com a passividade dela no fim de tudo, quando Avalon se perdeu nas brumas. De novo achei que ela foi burra e teimosa, e eu quis novamente que Avalon tivesse vencido na vida real, de alguma forma.

E, voltando a pensar na questão "o que pode uma virgem saber sobre as mágoas e labutas da humanidade?", eu voltei a concluir que essa frase é bobagem, que não é como se sexo fosse assim tão determinante para a capacidade de compreensão de mundo de alguém.

Terminei a leitura, vi o filme, me choquei porque Kevin simplesmente não aparece no filme, e segui minha vida bem satisfeita por ter finalmente entendido o livro de verdade.

Ponderações sobre a leitura dos 18 anos