tempo (30 anos)

Assim que fiz 29 anos, atenta que estava à próxima leitura que se aproximava, comecei a procurar na internet por Mists of Avalon. Não lembro em qual site pedi, mas foi em um daqueles que fazem a importação do livro, e que leva sei lá, 3 meses para chegar. Passou o tempo, o livro chegou, guardei na minha estante e fui viver minha vida até que eu completasse os 30 anos.

Não me lembro mais se eu já tinha contado antes para minha mãe sobre minha tradição de reler As Brumas. Mas me lembro de falar sobre isso enquanto eu estava na expectativa pela releitura dos 30 anos. Contei para ela várias das minhas impressões das leituras anteriores, e falei com ela que por todos esses anos eu sempre enxerguei Morgause como minha tia L. Minha mãe pediu para eu não contar isso pra ela NUNCA, porque minha tia L odeia a Morgause. E aí eu quis saber o motivo do ódio, e perguntei para minha mãe. Segundo minha mãe, minha tia L odiaria Morgause por ser manipuladora, por ser ruim, e por outros motivos que já não lembro as palavras, mas que descreviam Morgause como sendo basicamente uma vilã fdp.

Eu fucei mentalmente minhas memórias sobre Morgause, e encontrei sim algumas atitudes meio difíceis de entender, mas no geral, a impressão forte dela em mim era bastante positiva: força e independência. Cheguei a comentar com minha mãe quais eram as similaridades que eu via, mas minha mãe manteve a opinião de que era melhor eu nunca falar nisso com minha tia, sob o risco de ela ficar com raiva de mim. Decidi acatar o conselho de não comentar com a tia, e fiquei mais curiosa ainda com a releitura, porque agora eu precisava entender o que tinha de tão errado assim com a Morgause.

Mas esperei pacientemente. Até porque, com o cancelamento de Sense8 e as campanhas pela renovação da série, eu tinha bastante com o que me ocupar. E assim que fiz aniversário, peguei meu livro para ler.

Igraine era praticamente uma criança quando foi entregue para casamento com Gorlois. Ela não queria isso, queria ficar em Avalon para seguir como sacerdotisa, mas obedeceu Viviane e Taliesin e se casou. Ela aceitou bem o destino dela na medida do possível, e foi sim bem tratada por Gorlois.

Eu sempre vi minha mãe e minha tia L falando sobre o quão horrendo Gorlois era, mas eu ainda consegui olhar para ele com algum carinho nessa leitura. Ele é um personagem que precisa ser observado dentro de um contexto: para os padrões sociais atuais, Gorlois é sim um crápula. Mas no tempo e no espaço em que As Brumas se passa ele é sim um homem atipicamente gentil com Igraine. Não mais o considerei objetivamente bondoso, mas dentro do contexto, ele não é tão ruim assim. No fim das contas, ele é só um homem comum, fruto da sua época. E ele morre de uma forma bem feia, então fica tudo bem.

E aí eu vejo Morgause meio que se oferecendo para Gorlois??? Sentada de forma não apropriada no colo dele, quando ela já era adolescente??? Gorlois é marido da irmã dela!!! Como eu nunca tinha notado isso??? E ela é preguiçosa, não gosta de tarefas como fiar e tecer, mas faz belas tortas. Me incomoda Gorlois não ser quem desvia das investidas de Morgause, e sim Igraine chamar a atenção dela.

Acompanhei melhor o drama da morte de Ambrósio Aureliano e a questão de a Bretanha Maior ficar à mercê das invasões saxônicas. Acompanhei a urgência que os líderes tinham de ter alguém no poder que fosse respeitado por soldados romanos, e que conseguisse um diálogo com os vários senhores das terras. A aposta em Uther foi grande. Nesse ponto de vista, a traição de Igraine é quase uma nota de rodapé, mas acaba tendo uma importância imenso porque é dessa união que nascerá Artur.

Agora sim fez sentido todo o lance de Uther comentar sobre Igraine nunca ter sido tocada com delicadeza. Então a messagem aqui é que Gorlois fazia sexo preocupado apenas com o próprio prazer, e muito provavelmente não apenas não se importando com Igraine, quanto possivelmente a machucando. Consegui entender o que tinha de tão maravilhoso assim em Uther: carinhoso, respeitoso, oferecia prazer sexual; coisas que Igraine nunca tinha tido com Gorlois. Então entendi sim o deslumbramento dela. Mas ela bem que poderia não ter negligenciado os filhos por causa de macho, né? Respirando fundo, consigo colocar também esse aspecto em perspectiva sobre o tempo e o local em que essa história se passa, e assim consigo até ficar feliz por Igraine ter tido um casamento feliz. Mas Morgana criança limpando lábio cortado de um bebê que estava com as roupas molhadas não impediu que algum ranço permanecesse em mim.

Eu não lembro muito bem em qual das leituras isso aconteceu, provavelmente foi na dos 12 anos, mas eu sentia uma quebra estranha na história que eu não sabia como apontar e muito menos definir. Essa quebra me pareceu cristalina de tão óbvia em 2017: a história de Igraine, envolvente como seja, não é mais do que um prólogo para as histórias de Artur e Morgana. Nunca mais, em todo o livro, Igraine terá um papel central. A função dela na história é apenas ser a mãe dos protagonistas.

Viviane leva Morgana para Avalon, dando a ela momentaneamente toda a atenção que ela não recebia com Igraine. Mas, como eu já apontei aqui no blog, ao fim eu sinto que Morgana não encontrou acolhimento real nem com Igraine, nem com Viviane. Mas nessa leitura de agora eu começo a enxergar algo que me escapou por completo durante os anos: Viviane é humana. Ela é a magnífica Senhora do Lago? Sim! Mas ela é uma mulher baixinha, já não muito jovem, cansada da viagem em que ela conduz uma criança para um treinamento que será rigoroso e em certos momentos até cruel. Mas Viviane ainda é humana, ainda é uma pessoa, e ela é a tia mais legal do mundo para Morgana durante o trajeto até Avalon.

O lindo e sofrido Lancelote surge bem menos interessante, dessa vez. Foi tão mágico o encontro dele com Morgana nas outras leituras. Agora ele já me parece tão mais adequado para a irritante e linda e tola e frágil e chatinha Gwenhwyfar. Mas eu ainda sinto raiva da Gwen, e do Lancelote, e ainda me doo pelo "pequena e feia como a gente das fadas", e pela virada súbita de admirar tanto e quase comer Morgana para em seguida entrar em modo paladino e ir paparicar a loira azeda e dramática tão cristãzinha e tão assustadinha.

E depois vem o ritual em que Morgana e Artur transam, e eu enxergo que anos antes Viviane já se doeu por saber que colocaria os dois irmãos nessa situação. Depois da noite que passam juntos, depois que se reconhecem, depois que se arrependem e ainda assim se perdoam, quando Morgana, compreensivelmente, vai confrontar Viviane cheia de fúria, eu entendo que Viviane sente sim por ter causado dor em Morgana. Ela tomou uma decisão terrível tendo em vista o bem maior, e esse era mesmo o papel dela, como Senhora do Lago. Mas a tia legal que levou Morgana para Avalon ainda existe ali, ainda mais velha, ainda mais cansada, e tomando decisões difíceis e bancando essas decisões. De novo, eu vi humanidade nas decisões de Viviane, coisa que me escapou muito em outras leituras.

E Morgana foge. E eu com certeza absoluta entendo a ira e o desejo de fuga. Mas também entendo que tinham mais coisas em jogo do que o coração partido dela ali. Ela deveria ter sido mais lógica e racional. Viviane sabia o que estava fazendo. Mas será que era isso mesmo? Ela foi enganada pra dar pro irmãozinha dela, aquele que ela cuidou quando bebê! Ela poderia ter ficado em Avalon. Ela deveria ter ficado em Avalon. Mas essa era minha opinião aos 30 anos, já sabendo o que vem a seguir, e julgando as atitudes de uma personagem de 18 anos. Ela talvez estivesse apenas sendo impulsiva e um pouco rebelde: coisas totalmente okay para alguém de 18 anos.

Morgause recebe Morgana de braços abertos após a fuga. Morgause agora é casada, senhora de seu castelo, manda tanto quanto Lot, seu marido. Ela é sim inegavelmente poderosa e altiva. E, entendendo quem era o pai do bebê de Morgana, decide deliberadamente tirar o bebê da mãe para obter poder político na Bretanha Maior quando esse bebê crescesse. Isso é absurdamente baixo. Ela sabia que Morgana estava em desespero demais para entender a manobra. Ela sabia que Morgana rejeitava aquele bebê pela forma como ele foi concebido, pela revolta dela com Viviane. E Morgause finge que está apenas removedo uma dor da injustiçada sobrinha, ganha o afeto da mais jovem, e pega para si o bebêzinho recém nascido simplesmente por ele ser um instrumento que poderia dar poder a ela. Nunca foi por Morgana ou por Gwydion.

Talvez eu tivesse me enganado com a pureza das intenções de Morgause por todos esses anos?

Morgana vai para a corte de Artur, ela faz amizade com Gwenhwyfar. Ela dá as costas para a fé dela de uma forma tão injusta. Eu já sabia o que viria a seguir, mas eu desejei que ela ganhasse um sacode da vida, pegasse de volta Gwydion com Morgause e voltasse para Avalon. Mas não, ela se conforma e se mistura. Ela volta a comer carne, meu deus do céu. Ela foi sacerdotisa da Deusa, criada para suceder Viviane em Avalon, e simplesmente vai brincar de ser cortesã em Camelot e curtir a vida de irmã do rei. Vai entregar fitinha do vestido para cavaleiros. Fazer perfume e feitiço do amor para Gwewhyfar. O tempo está passando e ela está apenas brincando de ser feliz. Enquanto Gwenhwyfar, nem tão frágil nem tão tola assim, vai afastando de pouquinho a pouquinho Artur de seu juramento a Avalon e à Deusa.

Gwenhwyfar ganha meu respeito à medida que Morgana perde. Ela quer Lancelote, ela tem Lancelote. Ela quer o amor da Morgana, ela ganha o amor da Morgana. Ela quer que o Grande Rei, seu marido, seja cristão, e torne a Bretanha cristã, ela torna o marido e o reino cristãos. Eu não concordo com as coisas que Gwenhwyfar quer e faz, mas é inegável que ela tem muito mais atitude do que a fujona da Morgana. A única coisa que ela quer (muito) e nunca consegue é ter um filho. E isso porque Morgause veio manipulando criadas da rainha por anos a fio para que Gwen sempre abortasse ao conceber (e aí eu consegui fechar o quadro do quão fdp Morgause é, e entendo minha tia L. não gostar dela).

Com a morte de Taliesin, Kevin assume o posto de Merlin da Bretanha. E eu consigo ver o que ele tem de interessante como homem, ao contrário das outras vezes que o vi apenas como "feio", apenas como deficiente físico. Já não me gera repulsa que Morgana tenha tido um caso com ele. Ele é um filho da puta traidor de Avalon? Sim. Mas as decisões dele não são arbitrárias. Infelizmente lutar por Avalon já é quase que lutar uma batalha perdida, a certas alturas. Ele tem bons argumentos. Claro que eu ainda quero socar a cara dele, mas não é como se ele estivesse fazendo algo realmente absurdo. E dói entender isso.

Lancelote! Lancelote amava sim Gwenwhyfar, mas agora é claro para mim que ele também ama Artur, talvez da mesma forma. Lancelote É bissexual!!!!!!!!!!!!! Como eu não entendi isso antes?!?!?!?

Já esqueci qual foi o gatilho, mas Morgana foge de novo. E, tentando atravessar a bruma e entrar em Avalon, ela vai parar no reino das fadas. Mais uma fuga, mais uma atitude besta, e mais consequências evitáveis. Mas gente do céu, como pude ficar tão chocada quando li Morgana e Raven se pegando??? Morgana pega mulher no reino das fadas também!! Eu realmente não enxerguei isso nas outras leituras??

E Morgana passa sei lá, dois ou três dias no reino das fadas. E, quando ela sai, se passaram 7 anos fora. Todo mundo está mais velho, e comentam o sumiço de Morgana e o fato de que parece que o tempo não passou para ela.

Niniane como Senhora do Lago me parece uma criança brincando de fazer trabalho de gente grande, e agora me pergunto o quanto dessa impressão foi sugerida no próprio texto. Mas mesmo que ela esteja bem intencionada e seja bastante esforçada, ela não atinge os resultados de Viviane, nem os resultados que provavelmente Morgana atingiria se tivesse ficado em Avalon.

Nessa leitura eu entendo o feitiço que Nimue faz para envolver Kevin, mas permaneço achando ela fraca por ter sucumbido ao próprio feitiço. (Anos depois, quando eu estivesse fazendo meus próprios feitiços, eu deixaria de achar Nimue fraca, entendendo realmente a proposta do trabalho mágico que ela fez). É muito bem feito o fim que Kevin leva, me sinto vingada pela traição dele a Avalon. Mas talvez a morte de Nimue tenha sido um preço alto demais para a punição a ele, já que Avalon e a religião da Deusa eram causas perdidas mesmo.

Morgana é casada por Artur com Uriens, e finalmente toma o sacode dos erros que ela acumulou durante os anos. Decide voltar a agir como a sacerdotisa que foi treinada para ser. Cumpre suas funções de esposa - cuidar do castelo, das criadas, dar atenção a seu marido idoso, além de fiar e tecer -, mas enquanto isso, se envolve com Acolon na tentativa de gerar uma filha para a Deusa, tenta reavivar as tradições da religião antiga na floresta local, tenta retomar seu caminho (que abandonou) para se tornar Senhora do Lago.

Mas ela já não é tão jovem, e perde o bebê que esperava. Seu feitiço para tentar derrubar Artur através de Acolon não tem o resultado desejado. Seus esforços são em vão, ela volta para Avalon, e anos depois, após a morte de Artur, ela acaba entrando para o convento onde Gwenwhyfar foi criada.

Eu consegui entender a docilidade com que Morgana, agora idosa, aceita que as noviças do convento a considerem mais uma freira. Morgana está resignada que os tempos mudaram, que agora vai realmente começar um tempo em que os cristãos vão predominar, mas que isso não quer dizer uma derrota da Deusa. A Deusa continua em suas muitas faces - a de Maria, por exemplo. Morgana faz as pazes com os próprios erros cometidos (eu passei a entender essa docilidade dela ao final, mas não consegui perdoar de verdade).

Essa é uma leitura em que eu percebo nitidamente a passagem do tempo, ao contrário de todas as outras. É comentado que os cabelos de Gwenwhyfar, quando mais velha, não mostram muito os fios brancos por ela ser loira. Os de Morgause não aparecem porque ela usa "henna do Marrocos, comprada em Londinium" (e eu, agora usuária de henna para cobrir os meus próprios fios brancos, acho a referência absolutamente fantástica). À medida que o tempo passa, não apenas as crianças da história vão crescendo e se tornando adultas - assistimos Gwydion e Nimue nascerem, por exemplo, para depois acompanharmos o que fizeram quando adultos -, mas os adultos envelhecem e morrem.

Bem ao fim do livro, Morgause tenta seduzir um soldado, que a rejeita dizendo que ela tem idade para ser avó dele. Eu não sei precisar em qual leitura (por isso não mencionei antes) eu me ofendi muito com a audácia desse soldado, de rejeitar Morgause mesmo ela sendo tão maravilhosa. Mas agora eu entendo, e concordo que é um absurdo Morgause ter tentado levar um jovenzinho para a sua cama.

Os personagens desenvolvem maturidade com o passar dos anos (ou não, alguns apenas se tornam mais cansados), eles se modificam, e isso está presente no texto do livro desde o começo. O tempo afeta os personagens, afeta os ambientes, afeta o curso da história. O tempo passa e muda tudo.

Além da passagem do tempo, um outro ponto que ganhou espaço para minhas reflexões foi a tal frase do prólogo "Mas o que pode uma virgem saber das mágoas e labutas da humanidade?". Okay, captei e concordei. Minha concordância não se deu pelo ato sexual em si, porque permaneci acreditando que atos sexuais não tragam sabedoria para ninguém. Mas essa sabedoria vem muito das interações e convivência entre pessoas. A intimidade do ato sexual pressupõe interações sociais dos mais diversos tipos, e é através dessas interações que alguma sabedoria e maturidade podem acabar sendo construídas. Então agora eu quase concordo com a tia C., que tadinhas das virgens. Mas como não acredito que o ato sexual seja o pressuposto para essa sabedoria, ainda acredito que pessoas que não façam sexo podem sim ser sábias.

Tentei entrar para um coven de Bruxaria Ancestral em algum ponto entre a leitura dos 24 e a leitura dos 30 anos, mas briguei com o líder antes de entrar de fato, porque ele considerou bobagem que eu questionasse tanto papéis de gênero, sexualidade, entre outras questões. Ele disse que eu me limitava ao me rotular demais, e eu disse que ele é um preconceituoso de visão restrita. Algum tempo depois disso, talvez uns poucos anos depois, eu comecei a estudar paganismo e neopaganismo por conta prórpia com mais afinco, inclusive partindo das leituras iniciais recomendadas pelo próprio líder do coven. Eu não me esqueço que ele disse que muitas pessoas do coven tiveram suas primeiras experiências com a bruxaria após a leitura d'As Brumas, e isso me deu um quentinho de ver a religião da Deusa de alguma forma de fato seguindo viva.