xarope para tosse (24 anos)

Quando eu decidi que finalmente escreveria esse blog, para registrar minhas impressões de cada leitura antes de reler aos 36 anos, eu me empolguei e já comecei a puxar coisas da memória. Vieram à minha cabeça pensamentos como "enxerguei fulano só na última leitura", "promontório", "meu Deus, a vergonha que senti com tal cena quando eu tinha 18 anos".

Mas nada que veio espontaneamente à minha memória se referia à leitura dos 24 anos. A única coisa que consegui lembrar foi: "tradução ruim". Nem uma opinião sobre o enredo, sobre personagens, sobre nada. Apenas o veredito final de "tradução ruim, na próxima, se eu for capaz, lerei em inglês".

Deixei a questão de lado por um momento e comecei, de fato, a escrever. Então, as coisas foram voltando à minha mente: eu estava em um contexto pessoal absolutamente caótico quando eu tinha 24 anos. Reli esse livro em meio a tanta dor que basicamente apaguei as impressões da leitura da minha memória. Sorte que eu tinha um diário na época, então agora consigo retomar algumas coisas. Sorte também que tive uma longa (e tensa) troca de e-mails com uma pessoa, e nessa troca de e-mails eu falei um pouco sobre esse período e sobre esse livro. Agora volto lá para relembrar algumas coisas (não são muitas, numericamente falando, mas são profundas e complexas).

Então, o relato dos 24 anos será escrito em duas versões. Uma breve, sem entrar em questões que foram dolorosas para mim na época, e uma longa, em que tento reconstruir minhas impressões sobre o livro (na realidade sobre um personagem) enquanto falo de coisas que podem ser gatilhos para outras pessoas.


Comecemos com a versão breve.

Eu estava terminando as aulas do meu curso de Letras, então me sentia uma tradutora muito competente. Li o livro julgando a tradução, e o veredito foi: tradução ruim. O sentimento era de que eu poderia ter feito melhor.

E consigo pensar em apenas um personagem que me marcou nessa releitura: Lancelote. Ao fim dessa releitura, eu dei a ele um diagnóstico que juntava todos os pedacinhos que me confundiam há anos em tudo que dizia respeito a ele: depressão.

Ao fim da leitura, comecei a pesquisar efetivamente sobre magia e bruxaria, sobre Wicca, sobre Bruxaria Ancestral, sobre New Age, sobre "Celtas", sobre paganismo e neopaganismo.

E aqui termina o relato breve. Se quiser ler o relato longo, é só continuar aqui. Ou você pode ir direto para o relato dos 30 anos.


[Aviso de gatilho: depressão e ideação suicida]

E vamos para a versão longa.

A quarta leitura desse livro foi feita em 2011 ou 2012, mais provavelmente em 2012. Pelo tempo de duração do meu curso de Letras, eu já deveria ter me formado nesse período, porém passei por algumas reprovações e isso me fez durar um ano a mais na faculdade. As reprovações aconteceram em momentos de piora da depressão - que melhorava um pouco e, em seguida, piorava bastante, para melhorar um pouco de novo e piorar tudo e mais um pouco em seguida. Essa montanha-russa durou longos anos. Também não me formei: a depressão estava com força total quando finalizei as aulas que eu tinha que assistir, e no momento em que tudo que eu precisava era levar os certificados de horas complementares e fazer as muitas horas complementares faltantes, eu desisti. Desisti não só da faculdade: desisti de mim, desisti de viver.

Eu não tinha motivos para continuar vivendo. Sentia um vazio horrendo, eu me descrevia como sendo oca. Trabalhar era chato, estar em casa era um pesadelo, a maior parte da minha motivação para ir para a casa do meu então namorado era não estar dentro da minha casa. Eu não suportava minha própria cabeça, meus próprios pensamentos. Tudo o que eu via era dor e desespero e inutilidade.

Eu quis morrer, e não falo isso de forma exagerada. Eu não tinha o que fazer comigo mesma mais. Escolhi método para o suicídio, escolhi local. Um dos primeiros locais que considerei foi dentro do banheiro da faculdade, mas enquanto eu pesquisava, mudei o método e o local. Mas eu sentia, ao mesmo tempo, uma culpa imensa, porque se eu de fato me matasse, deixaria triste quem eu julgava que não merecia ficar triste. Acabei criando, mais uma vez sem exagero, ódio pela pessoa que "me prendia" aqui.

Eu disse ali em cima que estava me sentindo uma ótima tradutora, e por mais que soe contraditório, eu estava sim, mesmo com a cabeça derretida por depressão. Eu tinha certeza de que naquele momento eu sabia tudo o que fosse importante saber sobre textos e sobre literatura e sobre traduções. E eu me apeguei muito às coisas que eu sabia, como algo que hoje me parece uma tentativa meio desesperada de encontrar algum valor em mim mesma.

Em algum momento, após completados os 24 anos, eu percebi que tinha chegado o momento que prometi a mim mesma aos 19. O momento do qual já falei no primeiro post desse blog, quando percebi que tinha lido As Brumas a cada 6 anos, em idades múltiplas de 6. O momento tinha chegado.

Mas para quê? Para quê manter uma tradição que, na verdade, surgiu de forma aleatória? Ok que ter sido tão regular, tão certinho, e sem intenção de ser assim regular, era exatamente o que fazia ser muito legal a proposta. Mas para quê? Se viver já era vazio de sentido, por que mesmo eu releria um livro que já tinha lido 3 vezes?

Pensei em não reler, porque a proposta foi feita em um momento idiota de otimismo, em uma época que, mesmo relativamente tristonha demais para o contexto que eu vivia (aos 19 eu não sabia que já estava cultivando sementinhas da depressão), eu ainda conseguia olhar para anos futuros e desejar e planejar coisas que aconteceriam lá. Aos 19, eu fui capaz de me imaginar com 24, 30, 36, 42... Mas com 24, eu não conseguia me imaginar nem com 25. Aliás, como mesmo eu tinha chegado até ali?

Eu sentia que minha vida tinha terminado. Sentia que minha vida real, com vontade, com energia, com vida, tinha acabado na realidade quando terminei o ensino médio, e que dali em diante eu fui só esmorecendo cada dia mais. Vivendo por viver, sem propósito. Tentando inventar novos motivos para me manter biologicamente viva, mesmo que a única coisa que eu tivesse vontade, de verdade, era morrer. E eu precisava inventar esses novos motivos, já que eu "não podia" fazer a única coisa que eu queria para não deixar uma pessoa triste.

Buscar coisas para fazer para ocupar minimamente minha existência infeliz tinha uma vibe meio da música "Cough Syrup", de Young the Giant (que, inclusive, foi citada nos meus diários como uma música capaz de traduzir o que eu sentia então). Eram xaropes para tosse, que disfarçam os sintomas, mas nunca, nunquinha, jamais, curam a doença que causa a tosse. Minha dor jamais se resolveria, eu já tinha tentado de tudo. Mas eu me distraía com o que dava, quando dava, se dava.

E foi nessa mentalidade que, por fim, eu decidi finalmente que releria sim As Brumas de Avalon. A releitura seria mais uma colherzinha de xarope para tosse, para fazer doer um pouco menos, sem resolver nada realmente, enquanto a leitura durasse. Pelo menos, vendo séries e lendo livros eu tinha alguns minutos focada em vidas que não eram a minha.

Como eu já disse, tenho poucas lembranças sobre minhas opiniões dessa leitura. Não sei o que pensei da Morgana, não sei a quantas andava minha opinião sobre a traição da Igraine, não sei quanta mágoa ainda guardei da Viviane. Não sei o quão mais profunda se tornou minha compreensão sobre o aspecto político do livro.

O que eu sei é que foi a primeira vez que Lancelote me passou uma impressão diferente de "chato" ou de "confuso". Ele não é confuso, ele simplesmente não sabe o que fazer com ele mesmo. Por isso, a lealdade dele oscila, e está sempre aberta a questionamentos e reflexões. Ele está tentando dar um sentido para a vida dele, mas isso nunca é possível. Ele está sempre perturbado e dividido. A constante na vida dele é a dúvida, e não no sentido intelectual e filosófico de sempre questionar tudo. Assim como eu, Lancelote inventa o que fazer com ele mesmo enquanto vai sobrevivendo. Lancelote tem, sim, motivos para ser triste (vide leitura dos 12 anos): ele é vazio como eu, oco por dentro. Ele resmunga porque tudo dói. Eu não era mais sólida e coerente, era "esfarelada" (vide leitura dos 18 anos) a essas alturas. Como ele. Não temos motivações, somos vazios, indefinidos e sem rumo.

No meio de tanta angústia, não é surpresa que eu tenha achado Lancelote chato nas outras vezes.

Sobre o texto em si: encontrei vários absurdos de tradução no livro e entrei na determinação de que, se eu chegasse aos 30 anos e fosse reler mais uma vez (altamente improvável estar viva até lá), eu o faria em inglês, para conhecer o verdadeiro texto. Se eu fosse capaz de ler bem em inglês até lá.

Ao fim desta leitura, eu tive a certeza de que deveria buscar fosse o que fosse que se assemelhasse à antiga religião da Deusa, e fui para a internet procurar.

Ponderações sobre a leitura dos 24 anos